NYT_Twitter_Krugman_400x400fonte: Folha de SP

por Paul Krugman

Na década de 1850, Londres, a maior cidade do mundo, ainda não tinha um sistema de esgoto. Os resíduos simplesmente fluíam para o Tâmisa, o que é repugnante, como você pode imaginar. Mas os conservadores, incluindo a revista “The Economist” e o primeiro-ministro, se opuseram a qualquer esforço para remediar a situação. Afinal, esse esforço envolveria aumento dos gastos do governo e, eles insistiam, reduziria a liberdade pessoal e o controle local.

Foi preciso o Grande Fedor de 1858, quando o mau cheiro tornou as câmaras do Parlamento inutilizáveis, para que algo fosse feito.

Mas isso tudo é história antiga. Os políticos modernos, não importa quão conservadores sejam, entendem que a saúde pública é uma função essencial do governo. Certo? Não, errado – como ilustrado pelo desastre em Flint, em Michigan.

O que sabemos até agora é que, em 2014, o gestor de emergência da cidade – nomeado por Rick Snyder, governador republicano do Estado – decidiu mudar a fonte de água para uma que não é segura, contaminada por chumbo e muito mais, com o objetivo de economizar dinheiro. E está se tornando cada vez mais claro que funcionários do Estado sabiam que estavam prejudicando a saúde pública, colocando particularmente as crianças em risco, mesmo que eles não tenham fornecido informação aos residentes e aos especialistas em saúde.

Essa história – estamos nos Estados Unidos no século 21 e você não pode confiar nem na água nem no que dizem as autoridades – seria um ultraje horrível, mesmo que fosse um acidente ou um exemplo isolado de má política. Mas não é. Pelo contrário, o pesadelo em Flint reflete o ressurgimento na política americana, exatamente das mesmas atitudes que levaram ao Grande Fedor de Londres mais de um século e meio atrás.

Vamos voltar um pouco e falar sobre o papel do governo em uma sociedade avançada.

No mundo moderno, muito gastos do governo vão para programas de seguro social – coisas como seguridade social, Medicare e assim por diante, que são supostamente para proteger os cidadãos contra os infortúnios da vida. Essa despesa é objeto de debates políticos ferozes – o que é compreensível. Os liberais querem ajudar os pobres e infelizes, os conservadores querem deixar as pessoas manterem sua renda suada, e não há resposta certa para esse debate, porque é uma questão de valores.

Deve-se, no entanto, haver menos debate sobre os gastos com o que, em economia, chamamos de bens públicos – coisas que beneficiam a todos e não podem ser fornecidas pelo setor privado. Sim, nós podemos discordar sobre o tamanho da força militar de que precisamos ou sobre quão densa e bem conservada a rede rodoviária deveria ser, mas não esperaríamos controvérsia em relação a gastar o suficiente para fornecer bens públicos essenciais, como educação básica ou água potável.

No entanto, uma coisa engraçada aconteceu quando os conservadores de linha dura assumiram muitos governos estaduais americanos. Na verdade, não é exatamente engraçado. Não surpreendentemente, eles têm procurado cortar gastos com seguro social para os pobres. Muitos governos estaduais não gostam realmente de gastar com os pobres, então estão rejeitando uma expansão do Medicaid, que não lhes custaria nada, porque é financiado pelo governo federal. Mas o que vemos também é uma avareza extrema em relação aos bens públicos.

É fácil lembrar alguns exemplos. O Kansas, que figurou nas manchetes com sua estratégia fracassada de corte de impostos na expectativa de um milagre econômico, tentou fechar a lacuna orçamental resultante disso em grande parte com cortes na educação. A Carolina do Norte também impôs cortes drásticos para as escolas. E em Nova Jersey, Chris Christie cancelou um túnel ferroviário sob o Hudson, que era desesperadamente necessário.

Também não estamos falando apenas de um punhado de casos. Os gastos com obras públicas como proporção da renda nacional caíram acentuadamente nos últimos anos, refletindo os cortes dos governos estaduais e municipais que estão cada vez menos interessados ​​no fornecimento de bens públicos para o futuro. E isso inclui cortes acentuados nos gastos com abastecimento de água.

Então, estamos apenas falando sobre os efeitos de uma ideologia? Será que Flint não entrou na mira de austeridade porque é uma cidade pobre, em sua maioria afro-americana? Sim, isso é definitivamente parte do que aconteceu – seria difícil imaginar algo semelhante acontecendo em Grosse Pointe.

Mas essas realmente não são histórias separadas. O que vemos em Flint é uma situação tipicamente americana de interação entre uma ideologia (literalmente) venenosa e raça, em que os pequenos governos extremistas são empoderados pelo sentimento de muitos eleitores de que um bom governo é simplesmente uma doação a essas pessoas.

E agora? Snyder finalmente expressou alguma contrição, embora ele ainda esteja retendo muita informação de que precisamos para entender completamente o que aconteceu. E, enquanto isso, ouvimos, inevitavelmente, que não devemos tornar a contaminação de Flint uma questão partidária.
Mas não poderemos entender o que aconteceu em Flint, e o que vai acontecer em muitos outros lugares, se as tendências atuais continuarem, sem entendermos a ideologia que torna o desastre possível.

Tradução de MARIA PAULA AUTRAN